sábado, 16 de maio de 2009

Uma Vida II

Chamava-se João.



Adorava o cheiro dos livros acabadinhos de comprar. Ou na livraria ou no alfarrabista. Tanto fazia...


Fechava os olhos e sentia aquele odor entrando dentro de si, tomando-lhe as fossas nasais de assalto, tomando conta da garganta, faringe, laringe, brônquios, bronquíolos, alvéolos pulmonares...



PUMBA



HEMATOSE



Nessa hematose ganhava minutos de vida. Suas mãos soerguiam-se, passeavam-se pela capa languidamente, provocadoras, como quem seduz e prende uma presa... e não se cansava de tocar, tocar e tocar e a cada toque lascivo uma hematose prolongada de odor... Virava-os de um lado, virava-os do outro. Era o kamasutra do livro. Lia a sinopse. Lia a contra-capa. Lia o colefão. E quanto mais lia, mais lhe apetecia retardar o momento final, lendo apenas os apetisers salivava já de paixão só com o momento que ainda estava para vir.



Dava uma espreitadela, lia as primeiras linhas, como quem rouba um beijo.

Voltava a fechar.

Mais uma leituradela rápida numas linhas mais abaixo da primeira página como quem faz uma dança de ombro .

Voltava a fechar.

Passava os dedos de uma enfiada pelas folhas à toa como quem passa a mão num corpo já a ferver.

Ria, voltava a fechar.

Os preliminares do livro, o tantra da leitura...


Chamava-se João e só começava a ler já em casa, no sofá, como quem esperou por um amante depois de muitas investidas.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

25 d'Abril

Pariu-nos o Abril depois de um aborto provocado,
tomámos a Liberdade como ganha,
a Democracia como adquirida.

Quisémos nascer sendo sempre crianças,
fomos um Óscar de um nobel alemão,
prostrámo-nos nessa infinda maresia e névoa
de uma Europa de dinheiros fartos.

E como o Napoleão no Triunfo dos Porcos
bebemos comemos gastámos esbanjámos...
ostentámos o que não era nosso...

Engole-nos a crise e pedimos para morrer
e nascer uma outra vez
e cantar uma nova revolução
fazer uma outra coisa que não esta democracia
que não esta europa
que não esta liberdade...

Pariu-nos o Abril num parto a ferros
após meio século de regorgitação...
Abriu-nos as pernas e largou-nos no mundo
numa jangada de pedra à deriva
foram cravos, meu senhor
foram cravos...

Momentos IV

A um canto do recanto do momento daquela paixão ia buscar um sentimento agridoce, um bater de coração mais rápido, como pôr-de-sol em chamas numa tarde finda de Verão, sem sequer parar para respirar nem tocar de leve na ferida esmagando nas mãos um bocado de uma recordação, qualquer, de mulher, queimando com o frio de uma lembrança que passa de botas pesadas calcando o chão de vários gestos angustiantemente lentos, castrando o pulsar de uma emoção.

sábado, 21 de março de 2009

Primavera

Sem outonos ou invernos
o mundo não faz sentido:
sempre castanho, sempre ameno,
nem tudo é branco, nem tudo é frio.

Com um calorzinho a mais
convidando à paixão
a um invernante destino
a uma outunante escanção

Porque a vida é rodopiante
e os tempos celeres
e a crise aperta
e o mundo irrompe
e a guerra alimenta-se
e a esperança vive
e o desejo é forte
e a mudança assiste...

Sem uma pitada de cor
de que serve ter visão?
Sem uma ponta de frio
de que serve o cobertor?

Nesta rima antiga
assim, tão estilizada,
canto a Primavera da vida
canto a sua chegada!

domingo, 1 de março de 2009

deja vu

Rodopia na palma da mão
como se já conhecesse
o aroma dessa existência
num momento só
as cores de um retrato
antigo e desbotado.

Já viu, respirou, sentiu,
este lugar, labirinto,
que acende a memória
e queima a preto e branco
a lembrança
em lume brando
num piscar de olhar.

Momento duplicado
revisitado, a dobrar,
enchendo o espírito
e voltando a vazar
como lua e maré
brincando... amantes eternos
de um olhar.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Momento III

Encher uma folha de palavras,
palavras e mais palavras
vocabulário sem sentido
frases à toa
sem sentido
sem parágrafos
e escrever escrever escrever
até que o pulso doa
mas deixar escrito
essa escrita de loucura
da insandice que é a vida
de palavras à toa.
Segunda conjugação da vida:
escrever, viver.

Momento II

O cursor a piscar e a pedir umas palavras. Que fazer quando se vai a inspiração?
VIVER, VIVER, mas viver a sério -
Escrever uma história com narrador participante e omnisciente.
Dizer não às narrativas de narradores não participantes - VIVER.